Fatos

De onde veio a questão sexual?

Conforme Foucault (1999b), foi na família burguesa que a questão sexual apareceu. Os pais começaram a preocupar-se com a vida sexual dos seus filhos. Ficaram apavorados com a possibilidade da masturbação e então, resolveram vigiar a sexualidade das crianças, o que contribuiu para fortalecê-la, fazendo emergir algo que estava escondido. Múltiplas formas de sexo tiveram expressão na família vitoriana do século XIX. Contrário à tese Foucault Iana, Gay (1999) atesta que o prazer sexual acomodava-se nos dormitórios domésticos, mas não se mostrava publicamente. Os desejos eram vividos intensamente na vida privada, mas escondidos do espaço público. A sexualidade permanecia reclusa no espaço doméstico. De acordo com Foucault (1999b), em vez de mantê-la restrita à esfera privada, a família decidiu expô-la. Como não sabia o que fazer com manifestações sexuais tão assustadoras, ela solicitou o auxílio de profissionais, transferindo aos especialistas a responsabilidade de tratar da sexualidade do casal, da mulher, das crianças e dos homossexuais.
Segundo Foucault (1999b), nos séculos XVIII, XIX e XX, os discursos sexuais proliferaram-se. Nunca se falou tanto da intimidade sexual. O pudor discursivo diminuíra. As palavras indecentes deveriam ser filtradas para expressar o sexo, mas ninguém poderia ficar calado. As paixões deveriam ser mostradas sem inibição. A sociedade burguesa não parecia, como se acreditava, regida por um regime sexual espartano que exigia reserva, silêncio e discrição. A sexualidade não estava trancada no quarto dos casais.

Sexualidade em conventos

Segundo Miranda (1998), nos séculos XVII e XVIII, a sexualidade se alojava nos claustros das freiras. O desejo sexual penetrava sutilmente nos lugares sagrados. A sacralidade excessiva não impedia a manifestação silenciosa das paixões; pelo contrário, instigava. O isolamento religioso favorecia a espiritualização do corpo e a erotização da alma. O corpo estava protegido das seduções da “carne”, uma vez que as freiras encontravam-se trancadas nos conventos, distantes dos contatos físicos. Entretanto, a alma era atormentada por desejos, pensamentos e imagens. O erotismo fazia-se presente e afligia a vida das mulheres enclausuradas, que se mutilavam para dissipá-lo.
A sensualidade misturava-se com a santidade. Conforme Miranda (1998), nos séculos XVII e XVIII, no Brasil e em Portugal, muitas mulheres foram internadas por diversas razões que não eram necessariamente os interesses religiosos. Algumas eram levadas aos conventos e mantidas neles por serem ousadas sexualmente, sedutoras, vulgares, desobedientes e insubmissas. Mulheres que cometeram algum pecado sexual, ocupavam as celas dos claustros, sendo perseguidas por suas fantasias eróticas. Os mosteiros ainda recebiam moças ameaçadas pela possibilidade de entregar-se a uma paixão, prevenindo-as dos pecados da “carne”. Conviviam nesse ambiente supostamente sagrado, meninas virgens e mulheres sensuais, moças recatadas e amantes apaixonadas. Cartas e poesias eróticas foram produzidas nos conventos sagrados.
Na maioria dos claustros portugueses e brasileiros, as freiras possuíam seus namorados e amantes, alguns dos quais tinham livre acesso aos mosteiros, lugar onde marcavam encontros e entregavam-se aos prazeres sexuais. As monjas eram consideradas grandes amantes, as mais belas e atraentes dentre as mulheres. Contudo, eram também tratadas como seres perigosos que ameaçavam a estabilidade dos homens. As poesias freiráticas, muito recorrentes em Portugal, exaltavam sua sensualidade, a promiscuidade dos seus toques e a lascívia do seu corpo.
As freiras eram simultaneamente admiradas e repudiadas nos escritos eróticos, que divulgavam os envolvimentos até então secretos. Os poemas freiráticos difundiram-se e se tornaram documentos públicos, causando certa indignação, pois adotavam uma linguagem erótica e passional para referir-se a mulheres supostamente castas. As freiras, vestidas de trajes religiosos capazes de cobrir o corpo inteiro, seduziam homens, que mantinham com elas relações platônicas. Eles sabiam que não podiam tocá-las, mas procuravam encontrá-las para manifestar seu amor, dirigir olhares calorosos e expressar seus desejos. Essas mulheres, no entanto, pareciam distantes e inatingíveis.
Começava-se, assim, uma aproximação afetiva que podia culminar em encontros íntimos. Seduzida pelos encantos de seu pretendente, a monja o convidava às cerimônias religiosas a fim de encontrá-lo, momento em que trocavam olhares lascivos e demonstravam o desejo que sentiam de envolver-se sexualmente. Tudo era muito sigiloso. “Já que tem que ser, que seja em segredo” (MIRANDA, 1998, p. 8). A aproximação ocorria de forma gradativa. No início, encontravam-se nos confessionários. Conversavam, mas não podiam olhar-se. As visitas iam se tornando cada vez mais freqüentes. Entretanto, eles não conseguiam aproximar-se fisicamente. Grades e ferros os separavam, impedindo-os de tocarem-se. A escuridão dificultava a visão, porém animava a imaginação. “Elas fruíam a volúpia de serem desejadas e admiradas; eles, a da violação do pudor feminino e do dogma religioso” (MIRANDA, 1998, p. 8).
Muitos freiráticos não se contentaram em permanecer do lado de fora dos mosteiros, sem autorização para entrar num lugar apenas reservado às mulheres. Apesar dos obstáculos, não desistiram. Distribuíam presentes àqueles que eram responsáveis por manter as celas fechadas, subornavam abadessas e faziam aos padres contribuições generosas a fim de obter permissão para entrar nos conventos ou enviar livremente suas cartas. Desse modo, alguns pretendentes conseguiam entrar nos mosteiros para visitar seu objeto de desejo, tendo como cúmplices padres e monjas. Outros, por sua vez, pulavam os altos muros da fortaleza espiritual ou vestiam-se disfarçadamente com hábito de freira. “Nas celas os catres rangiam, os corpos alvos das freiras suavam sob o calor dos nobres, estudantes, desembargadores, provinciais, infantes. Os gemidos eram abafados com beijos” (MIRANDA, 1998, p. 9). Carícias eram trocadas no espaço sagrado.

Profusão dos discursos sobre a sexualidade

Os discursos sobre a sexualidade foram se multiplicando nas Igrejas e conventos desde o início do cristianismo. A hierarquia eclesiástica desenvolveu instrumentos que exigiram a confissão do sexo, convertendo-o em práticas discursivas. Era preciso falar constantemente das experiências e desejos sexuais. O silêncio em torno da sexualidade foi quebrado. Tornou-se imperativo moral dizer tudo sobre o sexo. Nada deveria permanecer encoberto. Tudo que fosse encontrado ou descoberto sobre a própria vida sexual precisava ser revelado. Segundo Foucault (1999b), nos séculos XVIII, XIX e XX, os discursos sexuais proliferaram-se. Nunca se falou tanto da intimidade sexual. O pudor discursivo diminuíra. As palavras indecentes deveriam ser filtradas para expressar o sexo, mas ninguém poderia ficar calado. As paixões deveriam ser mostradas sem inibição. A sociedade burguesa não parecia, como se acreditava, regida por um regime sexual espartano que exigia reserva, silêncio e discrição. A sexualidade não estava trancada no quarto.
Era preciso exibir os detalhes da vida sexual àqueles cuja função era escutar atentamente o relato para em seguida apresentar o “veredicto”. Filhos, pacientes, alunos e réus confessariam seus “pecados” a pais, médicos, pedagogos e juízes. A prática da confissão, inventada pelo cristianismo medieval para apreender os pormenores da vida sexual, difundiu-se e tornou-se instrumento científico, utilizado na consulta médica, na sessão psicanalítica, na atuação pedagógica e nos julgamentos jurídicos. A sexualidade, que até o século XVII era analisada, investigada e explorada exclusivamente pela pastoral cristã, passou a ser a partir do século XVIII observada por diferentes campos do conhecimento científico. Ela fugiu ao domínio da instituição eclesiástica, passando a ser controlada pela pedagogia, medicina, psicologia e economia, que continuavam a fazer uso de técnicas e procedimentos cristãos. A ciência, pois, apropriara-se do instrumento sacramental e do objeto de saber pelo qual a Igreja tanto se interessou desde a sua fundação.
[...] confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros. Confessa-se – ou se é forçado a confessar. Quando a confissão não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior, é extorquida; desencavam-se na alma ou arrancam-na ao corpo (FOUCALT, 1999b, p. 59).
A sexualidade, portanto, circulava nos mais diversos discursos. Era a temática predominante nos diários íntimos, nas obras autobiográficas, nas pregações religiosas, nas confissões dos fiéis, nos hospitais psiquiátricos, nas conferências médicas, nos processos penais, nas consultas clínicas, nas aulas dos professores e nos tratados científicos. A medicina, a pedagogia, a psicologia e a justiça penal desenvolveram aparelhos discursivos sobre o sexo. Dissecaram-no, expuseram seus mistérios, exigiram a revelação da intimidade, realizaram pesquisas, organizaram prontuários, fizeram registros, produziram diagnósticos e criaram diferentes formas de tratamento. Seus instrumentos de coleta de informações sofisticaram-se. A ciência foi aprimorada para analisar as perversões e desvios sexuais, preocupou-se com as sexualidades polimorfas – deslocando a atenção antes voltada para a relação conjugal – e devassou a sexualidade das crianças, das mulheres e dos homossexuais, considerada pecado pela pastoral cristã, crime pela justiça penal e doença mental pela psiquiatria.
Desde o inicio do cristianismo os discursos vem se multiplicando nas igrejas e conventos. A hierarquia eclesiástica desenvolveu instrumentos que exigiram a confissão do sexo, convertendo-o em práticas discursivas. Era preciso falar constantemente das experiências e desejos sexuais. O silêncio em torno da sexualidade passou a não mais existir. Tornou-se moral dizer tudo sobre o sexo. Tudo que fosse encontrado ou descoberto sobre a própria vida sexual precisava ser revelado.